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Desde a invenção do uso de paus e pedras, o homem aprendeu a criar ferramentas para no dia a dia, e seguimos assim desde então até os dias atuais. Todas as coisas que criamos, em maior ou menor grau, foram criadas para resolver problemas. A informática não fica atrás, também surgiu para resolver problemas, ou seja, cálculos complexos, decisões rápidas, tarefas repetitivas. No entanto, a informática tem um efeito colateral: antes dela, ninguém precisava se preocupar com backup em nuvem, com senhas de 16 dígitos, com o botão “Salvar como...”, com a angústia do “o sistema travou” ou com a inevitável atualização que chega justo quando tudo estava funcionando. Antigamente não existiam bugs, mas também não existia Ctrl+Z. A vida era analógica, imperfeita, porém muito mais direta.
Será que a informática surgiu para resolver nossos problemas — ou fomos nós que ganhamos novos problemas só porque ela apareceu?
Quando o conhecimento da matemática se tornou complexa e trabalhosa, nventamos máquinas para nos ajudar a pensar, calcular, armazenar, controlar, prever e acelerar. Daí, vieram também os novos problemas: inventamos, inconscientemente, o travamento, a lentidão, a tela azul, a obsolescência programada, a dependência da energia elétrica e a necessidade de salvar tudo em três formatos diferentes.
Construímos máquinas para pensar mais rápido, porém acabamos por mudar nossa forma de pensar de modo. Ao transferir tarefas à automação, transferimos também critérios, escolhas e responsabilidades. Nossa necessidade por controle gerou sistemas tão complexos que hoje já não conseguimos mais viver sem eles, mesmo que parte deles tenha surgido apenas porque... agora existe informática.
A tecnologia que criamos para nos libertar tornou-se, em parte, o que redefine os limites da nossa liberdade.
📜 Origens da informática: quando os problemas eram de verdade
Para compreender essa ambiguidade, é útil revisitar as origens da informática. Desde a Antiguidade, o ser humano buscou meios para estender sua capacidade de cálculo: ábacos, réguas de cálculo, engrenagens. França, século XVII, Blaise Pascal, observando as dificuldades de seu pai, desenvolveu a Pascalina, uma calculadora mecânica que somava automaticamente, ajudando seu pai nos registros fiscais. Temos depois, Leibniz viria a expandir essa ideia, inventando também a multiplicação e a divisão na máquina mecânica.
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No século XIX, Charles Babbage idealizou a Máquina Analítica, um verdadeiro protocomputador mecânico que já apresentava conceitos usados até hoje na informática: entrada de dados, memória e unidade lógica. Com a colaboração de sua assistente Ada Lovelace, Babbage formulou o que é considerado o primeiro algoritmo da história, pensado para ser executado por essa máquina.
Já no século XX, a Segunda Guerra Mundial acelerou as pesquisas baseadas nas ideias de Babbage, agora usando eletricidade em vez de engrenagens. Foi nesse contexto que surgiu o ENIAC: um computador eletrônico valvulado, desenvolvido nos Estados Unidos, tão grande que ocupava quase um prédio. Seu tamanho era uma necessidade para acomodar toda a potência computacional necessária, com tecnologia de válvulas, para conseguir calcular trajetórias balísticas em tempo real.
Décadas depois, a NASA precisava de uma máquina que aumentasse as chances de sobrevivência dos astronautas no programa espacial que os levou à Lua. Com o advento do circuito integrado — um componente contendo centenas ou milhares de transistores em seu interior — foi possível reduzir o computador eletrônico primitivo do tamanho de um prédio, como o ENIAC, para uma “calculadora marombada” de cerca de 70 kg. Assim surgiu o Apollo Guidance Computer, projetado para calcular correções de rotas em órbita da Terra e da Lua.
Assim vemos que a informática nasceu da tentativa de resolver limites humanos. Mas a expansão e a popularização do computador passou a redefinir o que é um problema e o que é uma necessidade.
🎮 Necessidade inventada: útil ou supérfluo?
A informática moderna resolve demandas humanas que realmente clamavam por soluções. O controle de tráfego aéreo, a previsão meteorológica, o sequenciamento genético, a automação da manufatura, a navegação por GPS — todos esses exemplos mostram soluções que não seriam possíveis sem a informática, sem o processamento digital massivo.
No entanto, existe a tal da “necessidade digital”, ou seja, situações e problemas que simplesmente não existiam antes da tecnologia que as tornaram possíveis. Ninguém sentia falta de backup em nuvem, atualizações de firmware, filtros anti-spam ou assistentes de voz. Passamos a desejar essas ferramentas porque elas foram inventadas. A tecnologia, nesse sentido, criou o próprio mercado de necessidades.
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Mas há outro aspecto, talvez ainda mais inquietante, sobre o qual raramente refletimos. A esmagadora maioria dos usos que damos hoje aos nossos supercomputadores, às GPUs de milhares de núcleos, aos data centers de escala continental... são, no fundo, voltados a fins supérfluos. Não que isso seja, em si, um problema. A arte, o entretenimento, os jogos, a expressão visual, tudo isso é legítimo. Mas não deixa de ser irônico perceber que grande parte do tempo de processamento gasto por máquinas que poderiam resolver equações diferenciais ou mapear proteínas está sendo usado para suavizar sombras em jogos de tiro, gerar animações para banners ou classificar emojis.
Ao mesmo tempo, os sistemas que de fato sustentam funções críticas — bancos centrais, redes elétricas, malhas ferroviárias, controle de tráfego aéreo — continuam a operar em ambientes legados, escritos em linguagens de décadas passadas, rodando em arquiteturas já extintas no mercado de consumo. A vanguarda tecnológica está renderizando sombras mais suaves em jogos AAA, enquanto o backend das finanças globais ainda depende de COBOL. Esses sistemas representam um tempo em que a informática surgiu para resolver problemas reais, sem distrações.
Desenvolvemos computadores cada vez mais rápidos, mais complexos, mais potentes... e só depois perguntamos: para quê, exatamente? Talvez estejamos diante de uma inversão histórica: não criamos mais ferramentas para resolver problemas. Criamos ferramentas, e depois inventamos problemas para justificar sua existência. É como se tivéssemos criado primeiro a chave de fenda — e só depois tivéssemos a ideia de inventar o parafuso.
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🧠 Liberdade, dependência e a crítica do presente
O problema, talvez, não seja a informática em si, mas o modo como a sociedade escolhe aplicá-la — ou delega a escolha a interesses corporativos, modismos, todos programando algoritmos sem rosto. Da-lhe "tigrinho" para viciar cérebros e arrancar dinheiro de quem já tem pouco.
No início, a promessa era clara: os computadores seriam nossas ferramentas. Extensões da mente, auxiliares da lógica, operários incansáveis da era da informação. Mas hoje, numa rotina de atualizações forçadas, notificações incessantes, redes que nos monitoram, algoritmos que nos moldam e telas que definem nossa presença no mundo, é difícil não perguntar:
Será que ainda somos nós que usamos a informática — ou será que é a informática quem tem nos usado?
A tecnologia, quando não pensada criticamente, deixa de ser ferramenta e passa a ser moldura. Deixa de nos servir para passar a ditar como pensamos, como sentimos e até o que julgamos necessário. O perigo não está nos dispositivos em si, mas no esquecimento de que fomos nós que os criamos — e que somos responsáveis pelo seu propósito.
Vale sempre lembrar que a informática surgiu para resolver problemas humanos — e não para amplificar algoritmos de influência e distração. A informática, os computadores, os algoritmos, a inteligência artificial — nada disso é consciente, vivo ou neutro. Não existe o risco propagado por teóricos da conspiração de que "as máquinas vão dominar o homem", em uma alusão desvirtuada a filmes de ficção como Matrix e Exterminador do Futuro. Não existem máquinas inteligentes, os computadores ainda são somente calculadoras, ainda que mais "marombadas" com coleções de informações armazenadas que vão e vêm. Mas não possuem absolutamente nenhuma consciência, nenhuma inteligência de fato, sequer fazem juízo do que elas mesmas são.
O perigo está por trás de cada máquina, de cada servidor: absolutamente toda tecnologia tem sempre um alguém, físico, real, pensante, com interesses próprios, que pouco se preocupa com quem vai usar a tecnologia. A intenção, o código escrito, o dado coletado, o direcionamento feito. Basta uma só pessoa, não precisa ser 40% de toda uma equipe, é uma só pessoa mesmo, para mudar tudo. Pode ser, por exemplo, o programador da central das urnas eletrônicas, corrompido, comprado ou ameaçado para mudar o resultado do voto e de toda uma nação... São os humanos — e nem sempre éticos — que alimentam esses sistemas com ideologias, interesses comerciais, estratégias de marketing ou agendas políticas de dominação social.
As tecnologias que usamos diariamente podem carregar visões de mundo enviesadas, vendidas como soluções universais. Em um cenário onde grandes empresas, governos autoritários e até grupos criminosos disputam poder digital, o risco maior não é mais sermos vigiados, agora temos que nos preocupar em nós policiar para não sermos moldados sem perceber.
Preservar a história da informática é, mais do que guardar equipamentos antigos. É preservar a memória de quando ainda éramos senhores das nossas ferramentas. E talvez seja esse o verdadeiro gesto revolucionário: lembrar que o ser humano não existe para se adaptar às máquinas — mas para transformá-las em aliadas conscientes da sua própria evolução.
“Toda tecnologia é um espelho: ela reflete o que valorizamos, mas também o que negligenciamos.”
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